terça-feira, 7 de outubro de 2008

Blindness

Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina, esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras: "Estou cego".

O homem dentro do carro esbraceja, grita, mas não consegue escapar da cegueira branca que inunda seus olhos. É uma cegueira diferente, luminosa, como se ele tivesse mergulhado de olhos abertos num "mar de leite". Apesar disso, seus olhos tem uma aparência normal.

Todas as pessoas com quem o motorista teve contacto cegam. Esta cegueira alastra-se e torna-se numa epidemia que tem que ser controlada através do isolamento (quarentena) num antigo manicómio onde numa ala estão os cegos e noutra os que os cegos tiveram contacto. Perante este cenário, o pior do Ser Humano emerge.


Este é o argumento resumido( não é do Saramago) do Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, que foi adaptado para filme por Fernando Meireles e que tanta polémica está a causar para a Associação de cegos Norte- americana. E porquê? Porque consideram escandaloso e de muito mau gosto que tenha sido a imagem da cegueira para falar sobre o colapso da sociedade.

Eu não sou especialmente fã de Saramago, mas admiro o seu engenho na escrita e a sua genialidade de pensamento. As críticas essas, então eram bem mais fundadas se dissessem que ele é uma “grande seca” do que anda a gozar com os ceguinhos… e que anda a passar má imagem deles.

É horrível dizer-se mas dentro dos ceguinhos não haverá maldade? Gente má, gente com maus princípios? Ou estará a maldade restrita a nós? Porque é que um filme onde um pai de família mata a vizinhança inteira à paulada não é polémico e quando se mete um ceguinho já não o pode ser? Porque intimamente acreditamos que são diferentes de nós, intrinsecamente melhores simplesmente porque tiveram uma calamidade na vida ( ou nasceram com ela). Pô-los na pele de um herói é mais “ humano” do que penalizá-los com actos menos bons. Não será isto discriminação positiva?

Mas a grande verdade é que o filme não é sobre cegos ( blindness), a cegueira é uma alegoria, assim como foi a “caverna” e a ausência de luz para Platão. Platão não tentou ridicularizar os homens da caverna… e isto seria o mesmo argumento utilizado pela Associação de Cegos… que é vergonhoso Platão utilizar os “prisioneiros” para expressar uma ideia e que isso era de péssimo mau gosto. Como é que Platão ousou em pegar em desgraçados e fazer disso um texto?

Quando Platão escreveu a Alegoria na República não foi sobre “Homens das cavernas”, mas sobre a ilusão das sombras e como o homem dentro da gruta estava enganado até ver a luz do sol e a realidade até então desconhecida. A ideia da Alegoria de Platão é percebermos como as coisas que nos chegam dos sentidos são apenas sombras das ideias. Da mesma maneira, Saramago pegou na ideia de cegueira colectiva para explicar algo muito mais geral.

Este falso moralismo assusta-me…e deixa-me a pensar numa frase de Saramago a propósito do seu livro e que servia bem de resposta aos contestatários: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

Porque ver é muito mais do que a visão nos dá, é o que a capacidade de entender atinge.

5 comentários:

Ana disse...

Saramago é um dos meus autores favoritos, e isso deve-se precisamente a este livro. O livro é uma metáfora, a cegueira serve de pretexto para a mudança do comportamento humano. Quem critica se calhar nem leu o livro. E concordo contigo, lá porque são cegos não serão todos santos pois não?

MiSs Detective disse...

ora nem mais! detesto moralismos idiotas!

Raquel A. disse...

Eu acho que as pessoas habituaram-se a reclamar por tudo e por nada.. Se fazem um filme sobre cegos é porque estão a gozar, se não fizessem é porque eram uns excluídos da sociedade.. Devia haver mais bom senso..

Anónimo disse...

Apoiado.Concordo plenamente contigo.
Toda esta polémica reflete como as pessoas são cegas para determinados assuntos.
Americanos, parvos.

Inspector Serôdio, José Serôdio disse...

Pior cego é aquele que não quer... ler!